8 de abr. de 2005

OS IRMÃOS DE JESUS



Jesus teve outros irmãos, filhos de Maria?            (Arcy Lopes Estrela – São Gonçalo/RJ.)

Segundo me disse um evangélico, a Igreja Católica defende que o termo “irmãos” de Jesus foi utilizado porque não havia nas línguas semitas (hebraico, aramaico) o termo “primo”. Mas, nas referências do N.T. sobre os irmãos de Cristo, a palavra grega que sempre é usada é adelfoV, adelphos (irmão), nunca se usou sungeneV, sungenes (parentes), ou anhyioV, anepsiós (primos), palavra esta que Paulo usou em Cl 4,10, e que foi traduzida corretamente como primo.
                (Guilherme Viegas Reis – Belo Horizonte/MG.)

            Um exame atento do contexto dos Evangelhos nos permite concluir que Jesus era filho único, apesar de algumas passagens  mencionarem Tiago, José, Simão e Judas como “irmãos” de Jesus (Mc 6,3; Mt 13,55).
            De fato, as línguas hebraica e aramaica não possuíam vocábulos próprios para definir diferentes graus de parentesco, como “primo”, “tio”, “sobrinho”. Todos esses parentes eram designados pela palavra “irmão”. Há numerosos textos do Antigo Testamento que o atestam, como por exemplo:
            “Os filhos de Mooli eram: Eleazar e Cis. Eleazar morreu sem deixar filhos, mas teve filhas que foram desposadas pelos filhos de Cis, seus irmãos.” (1 Cr 23,21-22)
            2Cr 36,9-10 diz que Nabucodonosor, rei da Babilônia, mandou prender e deportar o rei Joaquim, e constituiu Sedecias, seu irmão, como rei em seu lugar. Já em 2 Rs 24,17, Sedecias é apresentado como tio de Joaquim.
            Embora Lot fosse sobrinho de Abraão (Gn 11,27-31), este lhe diz: “Somos irmãos” (Gn 13,8). Também Labão, sogro de Jacó, refere-se a ele como “seu irmão” (Gn 29,15), embora seja na verdade seu tio, irmão de sua mãe (Gn 27,43 e 29,10-11).
            Há vários outros exemplos semelhantes a esses. Mas a inexistência de termos adequados não é o único, nem o principal motivo pelo qual os hebreus usavam a palavra “irmão” num sentido mais amplo. O verdadeiro motivo é cultural. A língua é sempre expressão de uma cultura e atende às suas necessidades: se as distinções entre os diversos graus de parentesco não eram previstas no vocabulário semita, é porque não eram consideradas importantes.
            O conceito de família entre os israelitas era muito diferente do nosso, e bem mais amplo. Eram considerados “irmãos” todos aqueles que pertenciam a uma mesma linhagem familiar. Os descendentes de um antepassado comum, mesmo depois da segunda ou terceira geração, eram considerados seus “filhos” e, portanto, irmãos entre si. Até no tempo de Jesus, os israelitas ainda se diziam “Filhos de Abraão”, e Jesus foi chamado “filho de Davi”, por ser da descendência desse rei.
            Os casamentos eram realizados, de preferência, dentro da mesma família. Por isso Abraão mandou um servo até sua terra natal, para buscar em sua família uma esposa para seu filho Isaac (Gn 24,3-4). Também Jacó desposou sua prima Raquel. No Cântico dos Cânticos, o pastor chama à sua amada: “Minha irmã, minha noiva” (Ct 4,9-10).
            Por respeito a essa questão cultural é que, quando o Antigo Testamento foi traduzido para o grego, conservou-se a palavra “irmão”, embora a língua grega, mais complexa, possuísse termos próprios para “primo”, “tio” e “sobrinho”. Essa tradução destinava-se às comunidades israelitas que viviam em território grego, e elas mantinham seus conceitos culturais, mesmo usando uma outra língua. Para eles, a unidade familiar (o “clã”) importava mais do que o grau exato de parentesco. Usar “primo”, “tio” ou “parente” reduziria o sentido do parentesco a um laço meramente biológico, que não era o que os autores bíblicos tinham em mente. Para os hebreus, os laços que uniam suas famílias representavam muito mais do que isso: era algo que atingia o nível espiritual e ontológico, relacionando-se com seu senso de pertença ao povo eleito de Deus e às doze tribos que o compunham.
            Em Cl 4,10, Paulo escrevia para uma comunidade grega e se referia a pessoas de origem grega, que não tinham o conceito cultural semita, por isso usou a palavra específica para “primo”, já que se referia mesmo ao parentesco biológico. Mas ele também usou, muitas vezes, a palavra “irmãos” no sentido amplo, quando se referia à comunidade dos cristãos, novo povo de Deus. Os próprios evangélicos costumam tratar-se dessa forma entre si...
            Não é, portanto, no termo empregado que se fundamenta a convicção católica de que Jesus era filho único, mas sim no contexto geral dos Evangelhos, que apresentam vários indícios nesse sentido, como por exemplo:           
- Lc 12,41-56 mostra Jesus aos 12 anos, acompanhando seus pais a Jerusalém, na festa da Páscoa, e sendo por eles perdido e procurado por 3 dias. Nada se fala sobre a presença de outras crianças com eles, e não é provável que fossem deixadas sozinhas em casa. Até os 12 anos, portanto, tudo indica que Jesus era filho único. Se os tais “irmãos” tivessem nascido depois disso, seriam ainda novos demais para o papel que desempenham nos evangelhos, durante o ministério público de Jesus.
- Embora se fale em “irmãos” de Jesus, em nenhuma passagem esses irmãos são apresentados como “filhos de Maria e José”. Ao contrário, Maria é sempre mencionada unicamente como mãe de Jesus, nunca como mãe de mais alguém. Nenhuma passagem diz, por exemplo: “Maria e seus filhos”. A Escritura sempre diz: “Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos dele” (At 1,14). Essa distinção seria desnecessária e até estranha, se esses “irmãos” fossem também filhos dela.
            - Em Jo 19,25-27, Jesus confia sua mãe à proteção do discípulo João. Isso leva a crer que, por essa altura, José já havia falecido. Segundo o costume judaico, porém, se Maria tivesse outros filhos, seria o mais velho destes quem deveria assumir o encargo de cuidar de sua mãe, após a morte de Jesus. Por que, então, Jesus a confia a João, que não era seu parente? E por que afirma que o filho dela, de agora em diante, será João?
            Os irmãos de Jesus, mencionados no Evangelho, são na verdade seus primos, como podemos deduzir dos seguintes textos:
Mt 27,56 diz que, junto à cruz de Jesus, estavam presentes, entre outras mulheres, Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Nada indica que essa “Maria, mãe de Tiago e de José” pudesse ser também a mãe de Jesus. Se fosse, isso não deixaria de ser mencionado.
            Jo 19,25 diz: “Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, Mulher de Cléofas, e Maria Madalena.”
            Atos 1,13 menciona, entre os discípulos, “Tiago, filho de Alfeu”. Sabe-se que os nomes “Cléofas” e “Alfeu” são traduções gregas do mesmo nome aramaico “Claphai”. Portanto, essa Maria, mulher de Cléofas e mãe de Tiago e de José, era outra Maria, parente da mãe de Jesus. Segundo um historiador antigo, era sua cunhada, pois Cléofas era provavelmente irmão de São José.
Pode-se ainda perguntar por que, no Evangelho, Maria aparece algumas vezes acompanhada pelos “irmãos de Jesus”. Isso se explica porque, segundo o costume judaico, as mulheres não podiam apresentar-se sozinhas em público, mas deviam ser sempre acompanhadas por parentes próximos do sexo masculino. Se José já havia falecido, e Jesus tinha saído de casa para cumprir sua missão, era natural que os primos de Jesus passassem a acompanhar sua tia.
Mas, além dos indícios bíblicos, a doutrina católica também se fundamenta na Tradição. Desde os mais remotos tempos, sempre houve na Igreja a convicção de que Jesus era filho único, convicção transmitida aos descendentes por aqueles que com ele conviveram. Não haveria razão para que se criasse essa tradição se não fosse verdadeira, já que o fato de ter irmãos seria algo muito natural, que em nada ofenderia a pessoa ou a missão de Jesus. O que não é natural é que, depois de quinze séculos, alguém comece a defender como verdade uma idéia completamente desconhecida na comunidade cristã até então, com base em termos que essa mesma comunidade cristã sempre conheceu e sempre interpretou diferentemente.

                                                                                                                         Margarida Hulshof

A VENERAÇÃO DE MARIA

Gostaria que comentasse o conteúdo desse artigo que saiu em um jornal de confissão luterana, com o título: “Virgem Venerada”.                                                       (Hilário Cargnin – Tubarão/SC.)

            O artigo em questão, publicado no jornal “O Pescador”, é transcrito de outra publicação, chamada “Sinais dos Tempos”, e não traz indicação do autor.
            O texto pretende ser uma resposta à seguinte pergunta: “Como surgiu o dogma católico da veneração de Maria?”, pergunta feita, evidentemente, por alguém que desconhece a nossa fé, já que a veneração de Maria não é um dogma.
            Mas, talvez porque a pergunta fala em dogma, a resposta aborda a história dos dogmas marianos. Felizmente não há erros nas citações dos documentos da Igreja, mas o texto pretende mostrar que a doutrina da Igreja sobre Maria não tem validade, por ser “totalmente desprovida de base bíblica”. E com isso, como sempre, contradiz a própria Bíblia na qual diz basear-se.
            Diz o artigo que “a Igreja apostólica jamais atribuiu a Maria qualquer função especial junto à comunidade dos crentes”. Essa é uma interpretação gratuita, já que o fato de “não estar escrito” não prova que alguma coisa não aconteceu. O objetivo dos Atos dos Apóstolos não era detalhar as funções de cada membro das comunidades, mas sim documentar a propagação do Evangelho pela ação missionária dos apóstolos, com a fundação das primeiras comunidades. E o objetivo das Cartas era transmitir orientações e tirar dúvidas dessas mesmas comunidades, no que diz respeito à fé. Naturalmente, essa não era a função de Maria, nem de qualquer outra mulher naquele tempo, mas isso não significa que Maria não tivesse “nenhuma função especial”. É significativo o fato de que ela estava presente junto aos apóstolos no acontecimento de Pentecostes, quando a Igreja nasceu “oficialmente”, por meio da infusão do Espírito Santo, que capacitou os apóstolos para continuar a missão de Cristo. E é evidente, também, que o testemunho de Maria está na base das narrativas evangélicas sobre a concepção e o nascimento de Jesus, bem como sobre sua infância, uma vez que nenhum dos evangelistas presenciou esses fatos. Isso mostra, no mínimo, que Maria mantinha contato com os apóstolos, e conversava com eles com alguma freqüência. Embora esse contato não esteja explícito nos Atos ou nas Cartas, está certamente implícito... e era certamente importante, já que contribuiu, no mínimo, para a redação dos Evangelhos.
 Se a pregação dos apóstolos deu frutos, e se a fé cristã se conservou até nossos dias, é claro que isso supõe a ação de muitas outras pessoas, e também outros tipos de ação, além daquelas narradas na Bíblia. Supõe, principalmente, a profunda formação na fé realizada no seio das famílias e transmitida de geração em geração... e isso, como todo mundo sabe, é principalmente tarefa das mulheres. E Maria a terá desempenhado, junto aos primeiros cristãos, com particular excelência, ela que, mais do que ninguém, tinha intimidade com Jesus e seus ensinamentos.
Os protestantes, porém, restringem a ação do Espírito Santo unicamente ao que está escrito na Bíblia, como se, fora dela, nada tivesse valor ou merecesse crédito. Como se, depois dos tempos apostólicos, a ação iluminadora do Espírito Santo deixasse de ser necessária, bastando seguir “o que está escrito”... eles não percebem que essa é uma interpretação contrária à própria Bíblia, já que Jesus prometeu o Espírito Santo à sua Igreja até o fim dos tempos, e não apenas para inspirar os redatores bíblicos. Ele nem sequer menciona a Escritura ao falar da missão da Igreja. Quando Jesus se refere às Escrituras, é geralmente para alertar contra o perigo de interpretá-las erradamente... O Espírito, na Bíblia, é sempre dado a pessoas, e a função de ensinar e de zelar pela ortodoxia da fé é transmitida pela imposição das mãos dos apóstolos aos sucessores por estes indicados. Está na Bíblia... O critério de infalibilidade apontado por Jesus é a palavra dos apóstolos (“quem vos ouve, a mim ouve”... “o que ligares na terra será ligado nos céus”... etc.), e, se a Igreja estava destinada a permanecer e continuar atuando também depois dos tempos bíblicos, não faz sentido supor que, com a morte dos apóstolos, Deus tenha retirado o seu Espírito da Igreja, para limitá-lo à Escritura, como se, a partir daí, nada mais pudesse evoluir, como se não houvesse sempre situações novas a exigir discernimento e decisões, a fim de manter viva a mensagem e conservar a ortodoxia em matéria de fé. Afinal, Jesus diz: “Estarei convosco até o fim dos tempos”, e não apenas no tempo dos Apóstolos. A Bíblia não diz que toda a ação da Igreja deveria, a partir de certo momento, passar a pautar-se unicamente pela Escritura. Nada nela faz prever essa “extinção” da ação do Espírito. Ao contrário, ela mostra a preocupação dos apóstolos em formar seus sucessores... Os protestantes desprezam os próprios critérios bíblicos ao rejeitar o dinamismo já presente na Igreja apostólica, para idolatrar a escritura como único critério de ortodoxia... coisa que, absolutamente, a Bíblia não ensina. O Novo Testamento nem sequer existia no tempo dos Apóstolos... e, de qualquer forma, as evidências mostram que a Escritura, sozinha, é insuficiente como critério de unidade e de valores, se não houver para ela uma interpretação autorizada.
Essa “idolatria da escritura”, desprovida de critérios, leva o autor do artigo a considerar a doutrina dos Padres da Igreja sobre a veneração devida a Maria por seu papel relevante na obra da redenção, assim como a noção de sua virgindade perpétua e de sua qualidade de Mãe de Deus (que depois se tornaram dogmas), como “teorias especulativas” que “começaram a se infiltrar no cristianismo pós-apostólico”, como se o fato de ser “pós-apostólico” fosse indicador de invalidade. Como se a opinião de pessoas nascidas dois mil anos depois dos apóstolos tivesse mais valor, ou pudesse ser mais fiel ao seu ensinamento do que aquilo que foi assimilado e vivido por seus herdeiros diretos e imediatos... ao menos aquilo que foi legitimado pelo Magistério, que não perdeu a assistência do Espírito Santo (se quisermos crer na promessa de Jesus).
O articulista diz que “foi a oração da Ave-Maria, originária do século 11, que mais contribuiu para popularizar essa veneração”, que, segundo um outro autor por ele citado, teria degenerado em adoração, “a ponto de suplantar a própria adoração de Cristo”.
Além de apresentar um julgamento gratuito e errôneo (pois a veneração a Maria nunca foi confundida, em nossa Igreja, com a adoração devida a Cristo, nem a superou), o autor se esquece de que as palavras da Ave-Maria, em sua primeira parte, são palavras da Bíblia... e que o próprio Deus já exaltava Maria, pela boca do anjo, muito antes de nós, tendo Maria profetizado – também na Bíblia – que todas as gerações a proclamariam bem-aventurada – o que Isabel e João Batista já tinham feito pouco antes. Nossa veneração tem, sim, portanto, uma forte base bíblica. Se o próprio Deus exalta Maria, não faz muito sentido supor que isso seja algo contrário à vontade de Deus...
O artigo interpreta as palavras de Jesus em Lucas 11,27-28 (onde ele diz que “os que ouvem a palavra de Deus e a observam” são mais felizes do que “as entranhas que o trouxeram e os seios que o amamentaram”) como uma advertência de Jesus contra a veneração a Maria. Na verdade, isso em nada desmerece Maria, já que ninguém ouviu ou observou as palavras de Jesus melhor do que ela. Essa passagem diz, simplesmente, que os laços de sangue nada são em si mesmos, sem a fé e a prática da fé. É uma advertência dirigida aos judeus, que se consideravam justos e justificados pelo simples fato de serem “filhos de Abraão”... e, no entanto, não reconheceram o Messias enviado por Deus. Quanto ao fato de que Jesus se coloca como caminho necessário e único para chegar ao Pai (como também lembra o artigo), isso não impede que o próprio Jesus tenha agido a pedido de Maria, nas bodas de Cana, assim como escolheu, também, vir ao mundo por meio dela. Pedir a intercessão de Maria não significa negar o caráter indispensável e exclusivo da mediação de Jesus. Sabemos que Maria não faz nada sem Jesus, mas isso em nada impede que peçamos a ela para transmitir a Jesus os nossos pedidos e interceder em nosso favor, como ela fez em Cana, e para nos trazer Jesus como fez em Belém. A intercessão de Maria certamente não é indispensável para a salvação, mas também não se opõe ao ensinamento de Jesus, já que ele mesmo quis condicionar a salvação dos homens ao consentimento e colaboração dela. E o mais importante é que a devoção mariana, longe de prejudicar,  pode favorecer nossa fidelidade a Jesus – na verdade, é nisso que consiste o seu valor. Nosso amor por Maria só tem sentido na medida em que nos conduz para mais perto de Jesus. O papel de Maria em nossa fé é semelhante ao que a Bíblia desempenha junto aos protestantes. Num e noutro podem ocorrer desvios e erros, mas nem por isso devemos desprezar os auxílios que o próprio Deus nos envia para nossa caminhada de fé.
É claro que nossa devoção supõe a convicção de que Maria está viva junto de Deus, assim como todos os santos. E aqui, de novo, o articulista contradiz a Bíblia, ao escrever: “O próprio dogma da assunção de Maria ao paraíso cai por terra se levarmos em consideração o ensino bíblico de que os mortos permanecem em estado de completa inconsciência na sepultura, aguardando o dia da ressurreição final. Maria foi uma pessoa piedosa e temente a Deus, mas ainda não se encontra no Céu, e, como qualquer outra criatura, jamais deveria ser venerada (ver Apoc. 22,8-9).”
Para contradizer a Igreja Católica, os protestantes preferem dar relevo a uma crença do Antigo Testamento, já superada no tempo de Jesus, ao invés de acatar as palavras do próprio Jesus... que afirma que o Pai “não é Deus de mortos, mas de vivos, pois todos vivem para ele” (Lc 20,38; Mt 22,32), e que também promete ao bom ladrão: “Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso”... Há ainda a parábola do rico e de Lázaro (Lc 16, 19-31) onde Jesus diz que “o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão”, que era diferente da “mansão dos mortos”, lugar de tormentos para onde foi o rico. Essa parábola refere-se claramente a uma vida consciente depois da morte, na qual os justos já gozam da bem-aventurança e os injustos são dela privados, mesmo antes da ressurreição dos corpos. Também o Apocalipse fala nos justos que estão junto de Deus e com ele dialogam (estão vivos, portanto), enquanto aguardam que se complete o número dos escolhidos (Apoc 6, 9-11). O trecho citado pelo articulista também fala em um ser vivente, um anjo, que não deve ser adorado porque não é Deus – o que nós também sabemos – mas nada tem a ver com a suposta inconsciência dos mortos.
Enfim: se nós estamos “contradizendo o ensino bíblico”, Jesus o fez antes de nós. São antes os protestantes que o fazem, nessa e em outras acusações, ao ignorar as palavras de Jesus na Bíblia. É claro que cada um tem o direito de acreditar no que quiser, e nós não obrigamos ninguém a pensar como nós. Só digo isso para mostrar a inconsistência dos argumentos utilizados pelos protestantes em suas acusações contra a Igreja Católica...                                           Margarida Hulshof (Dezembro/2003)

QUESTÕES SOBRE MARIA

Nossa Senhora era filha única?                                                      (Angelina Lima – Santa Cruz/RJ.)

            Provavelmente, sim. O proto-evangelho de Tiago, um documento apócrifo (não reconhecido como inspirado por Deus), traz os nomes dos pais de Nossa Senhora, Joaquim e Ana, e diz que Ana era estéril, tendo concebido por um favor especial de Deus, fato comum na geração das mais importantes figuras bíblicas, e que simboliza a total soberania e iniciativa de Deus na condução da história do seu povo. Nesses casos, geralmente, a gravidez é única. O mesmo documento diz que Maria foi consagrada a Deus e educada no templo a partir dos três anos de idade.

Se Nossa Senhora nasceu sem o pecado original, logicamente ela deve ter ficado isenta das dores do parto, que foram impostas à mulher como conseqüência do seu pecado por ter comido o fruto da árvore da Ciência do Bem e do Mal (Gen 3,16). Se isso é uma verdade, por que, no terço do Pe. José Maria, transmitido diariamente pela TV Século 21, na representação que fazem no mistério do nascimento de Cristo, a artista que representa Nossa Senhora aparece deitada, contorcendo-se de dores no parto de Jesus?                               
          (Marcello de Azevedo Penna Chaves – Campinas/SP.)

            De fato, sendo todas as dores humanas uma conseqüência do pecado, é mais do que lógico acreditar que a Mãe de Deus não experimentou as dores do parto, uma vez que foi concebida sem pecado, e também devido à natureza sobrenatural da concepção e do parto de Jesus.
            É verdade que a doutrina católica nada estabelece sobre esse pormenor. Afirma, entretanto, a virgindade perpétua de Nossa Senhora, antes, depois e também durante o parto de Jesus. E, se não houve mutilação física, provavelmente também não houve dor. É o que sempre professou a Tradição. São João Damasceno, por exemplo, escreveu (por volta do ano 730): “Assim como ela deu à luz sem dor, também sua morte esteve isenta de dores.” (Homilia da Natividade de Maria, 3).
            Entretanto, o parto virginal, por si só, não prova a ausência de dores. A dor nem sempre é uma conseqüência do pecado, pode ser também um ato de amor a Deus ou de oblação em favor dos irmãos, como no caso dos sofrimentos de Jesus e dos santos mártires. O “castigo” das dores de parto imposto à mulher como conseqüência do pecado original é apenas uma figura, significando que neste mundo não existe felicidade plena ou isenta de sofrimentos, mas que estes são a oportunidade que Deus nos dá para nosso aperfeiçoamento e conversão, para que um dia cheguemos ao estado de vida plena junto de Deus. Significa também que a vida sempre brota da morte, da dor, do dom de outra vida, como Jesus mostrou no Calvário e na imagem da semente que precisa morrer, para dar frutos.
            O fato é que não se pode dizer que seja um erro teológico representar Maria em dores de parto, já que não há definições doutrinárias concretas a esse respeito, apenas suposições.
            Em minha opinião, é muito mais edificante e respeitoso acreditar na ausência de dores. Mais ainda, não vejo necessidade alguma de examinar essa questão, nem de recorrer a esse tipo de apelação para representar o mistério do nascimento de Jesus. A mídia, porém – especialmente em nossos tempos – gosta de imagens fortes, que impressionem, que choquem até. Nota-se a tendência a um realismo extremo, muitas vezes caricatural. E essa tendência contamina também a mídia católica, que talvez acredite que uma cena mais “marcante” agradará mais. O que pode até ser verdade, no caso do público mais jovem.
            Diante de tais coisas, só nos resta ter paciência e rezar, entregando a Deus nossa perplexidade e pedindo-lhe que, apesar de tudo, as pessoas continuem podendo encontrar e seguir o caminho que leva ao céu. Afinal, é isso o que importa. Tenhamos confiança mesmo em meio às tempestades, cientes de que o Espírito Santo jamais abandonará a Igreja de Cristo.
                                                                                                                             
Depois do nascimento de Cristo, Maria levou as duas ofertas que a lei mandava, a oferta queimada e a oferta pelo pecado (Lc 2,22-24 e Lv 12, 6-8). Mas, se Maria não tinha pecado, para que levar as ofertas?                                          (Guilherme Viegas Reis – Belo Horizonte/MG.)

            Para cumprir a lei, como boa judia que era. Jesus também não tinha pecado, e apesar disso quis receber o batismo de conversão ministrado por João Batista. Foi circuncidado e consagrado a Deus como todo primogênito, e participava de bom grado, com sua família, de todos os ritos judaicos de purificação, pois quis ser em tudo semelhante aos homens, exceto no pecado. Ele não tinha pecado, mas assumiu sobre si os pecados de todos os homens, a ponto de imolar-se em sacrifício por eles. Diante disso, por que estranhar que sua Mãe se unisse a ele na humildade e na obediência? Se o Criador e Senhor se faz servo, assumindo totalmente a condição humana, dentro da cultura de seu povo, e se ainda por cima se deixa tratar como o pior do pecadores, como poderia sua mãe agir de outra forma? Além disso, ela provavelmente não sabia que tinha sido preservada do pecado. Foi dócil instrumento aos planos de Deus sem ter consciência da própria grandeza, como sempre acontece aos santos.

Por que a ressurreição de Maria não consta na Bíblia? É verdade que existe o Evangelho de Maria, à parte?                                                                                  (Pedro Heitor – Espera Feliz/MG.)

            A finalidade dos Evangelhos não é falar de Maria, e sim de Jesus e de seus ensinamentos, que são o fundamento da doutrina da Igreja. O que se fala de Maria, ali, é somente aquilo que está diretamente relacionado com Jesus. Já os demais livros do Novo Testamento documentam a pregação dos apóstolos, com a formação das primeiras comunidades. A exaltação de Maria por Deus e seu papel de medianeira e de mãe da Igreja só começou a ser compreendido mais tarde, quando o Novo Testamento já estava encerrado. Logo se difundiu a crença de que Maria foi levada ao céu em corpo e alma, antecipando a ressurreição que nos aguarda a todos. Por não ter sido contaminada com o pecado, ela também não teria sofrido a conseqüência do pecado, que é a deterioração do corpo após a morte. O Dogma da Assunção Corporal de Maria foi definido oficialmente em 1950, pelo Papa Pio XII. Sua assunção difere da ascensão de Jesus porque este subiu ao céu por seus próprios meios, enquanto Maria foi levada por Deus (as representações artísticas a mostram carregada por anjos). O dogma não define se Maria chegou a experimentar a morte, ou se passou ainda em vida para a glória celeste. Essa questão permanece em aberto. A maioria dos teólogos acha que, se Jesus passou pela morte, também Maria não poderia deixar de fazê-lo. É certo, porém, que seu corpo não sofreu a corrupção, e que ela já está na glória em corpo e alma, diferentemente dos demais seres humanos, cujo corpo só ressuscitará no fim dos tempos.
            Existe um documento apócrifo chamado Evangelho de Maria, assim como há outros (de Tomé, de Tiago, etc.). São documentos antigos que contêm narrativas mais ou menos contemporâneas aos quatro evangelhos, e que podem conter informações verídicas, mas que a Igreja não reconhece como inspirados por Deus. Não se pode garantir a autenticidade de seu conteúdo. Ao lado de fatos verídicos, eles podem conter outros que não passam de fantasia. Tais documentos não são considerados matéria de fé.

Há em minha cidade uma antiga igreja barroca dedicada a Nossa Senhora da Boa Morte. Quando essa igreja tornou-se sede de uma paróquia, esta passou a chamar-se “paróquia da Assunção”, porque o pároco afirma que Nossa Senhora não morreu, sendo elevada aos céus em corpo e alma sem passar pela morte. Muitos têm dificuldade para aceitar essa idéia, habituados que já estão com a tradição da morte e ressurreição de Nossa Senhora, antes de sua assunção, havendo inclusive a “Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte”. Penso que qualquer uma das duas hipóteses pode ser aceita pelos católicos, mas gostaria de saber qual a doutrina mais aceita pela Igreja a esse respeito.        (Clodoaldo Dantas Mota – Barbacena/MG.)
           
            Realmente, qualquer das duas hipóteses pode ser igualmente aceita, porque a Igreja não define essa questão, mas a deixa “em aberto”. A doutrina afirma apenas que, “terminado o curso de sua vida terrestre”, Nossa Senhora foi elevada ao céu em corpo e alma, ou seja, é a única pessoa, além de Jesus, que já passou pela “ressurreição da carne”, por sua dignidade especial de mãe de Deus. É legítimo acreditar que, mesmo não estando sujeita à lei da morte por ter nascido sem o pecado original, ela experimentou a morte para solidarizar-se com seu divino Filho também nesse aspecto. Creio que essa é a hipótese mais aceita, mas não se pode afirmar com certeza nem uma, nem outra. O pároco pode ter a sua crença a esse respeito conforme preferir, mas não a pode impor aos seus paroquianos como sendo doutrina da Igreja, porque a Igreja não se pronuncia sobre esse aspecto. Da mesma forma, os confrades de Nossa Senhora da Boa Morte têm todo o direito de dar continuidade a seu culto e suas tradições, mas não podem afirmar que o pároco está errado. Para não prejudicar a unidade da paróquia, seria bom que se conseguisse chegar a um acordo.
            Podemos também invocar Nossa Senhora da Boa Morte com vistas à nossa própria morte, como aquela que nos pode assistir e interceder por nós “agora e na hora de nossa morte”, como dizemos na Ave-Maria. Ou seja, ela pode ser chamada “Nossa Senhora da Boa Morte” mesmo que não tenha morrido, porque nós, certamente, morreremos... e sabemos que ela, como boa Mãe, não deixará de estar ao nosso lado nessa hora difícil e decisiva.
           
                                                                                                                           Margarida Hulshof