17 de out. de 2011

Aborto de feto anencéfalico, que diz a Igreja.















EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

ADPF – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54.
RELATOR: Ministro Marco Aurélio.
ASSUNTO: Aborto do Feto Anencefálico.

BREVÍSSIMO MEMORIAL

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB, por seu advogado, ao fim assinado, em face dos relevantes interesses éticos, sociais e jurídicos envolvidos na presente controvérsia, e diante do pluralismo ideológico que deve informar uma sociedade democrática e aberta, vem apresentar, em brevíssimo memorial, seus argumentos, visando, modestamente, subsidiar o entendimento de Vossas Excelências em tema da maior gravidade e com uma importância ímpar junto à sociedade brasileira.

"Morrer se preciso for, matar nunca" (Marechal Rondon)

1. A matéria em discussão na mencionada ADPF é da mais alta relevância, haja vista envolver o valor fundante da existência humana: o nascer. Com efeito, a decisão liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio criou uma nova hipótese de descriminalização do aborto ao permiti-lo se o feto for anencefálico.

2. Com essa decisão, o Ministro Marco Aurélio, com todo o respeito, usurpou função exclusiva do Congresso Nacional: legislar positivamente. Em verdade, diz a nossa Constituição que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (Inciso II, Art. 5º). Sucede que essa decisão criou uma nova hipótese legislativa e em matéria de direito penal, gravada pela cláusula da estrita legalidade, em face dos valores sociais protegidos.

3. A CNBB é a entidade representativa dos interesses do episcopado brasileiro e dentre suas missões está a promoção do Evangelho de Cristo radicado nas seguintes exortações, dentre outras:
"Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mateus, 22, 39).
"Eu vim para que todos tenham vida e a tenham plenamente" (João, 10, 10).
"Eu quero a misericórdia e não sacrifícios" (Mateus, 9, 13).

4. Excelências, o Evangelho de Jesus Cristo é parte das concepções de Mundo há mais de 2.000 (dois) mil anos. No Brasil, o cristianismo se confunde com a nossa história. Daí que os valores cristãos fazem parte da formação cultural de nossa sociedade. Um Estado laico respeita os valores religiosos de uma sociedade e os considera na formulação de suas decisões. Os Poderes do Estado, e o Judiciário é um deles, decidem em nome e para o povo, daí que não podem desprezar ou ignorar esses valores em suas decisões.

5. A República deve ser laica, democrática, plural e aberta. Todavia, isso não implica ou impõe uma indiferença ou desconsideração aos aspectos espirituais ou às convicções das pessoas. O Estado não tem fé, as pessoas sim.

6. Daí, indaga-se: deve o Judiciário ignorar a religiosidade dos jurisdicionados? Entendemos que não. Na verdade, deve velar na proteção desse bem jurídico -- as crenças religiosas. Afinal, sabemos todos que religiosidade é uma das mais belas manifestações culturais de um povo. A sociedade brasileira tem nas suas religiões um dos seus elementos de identidade.

7. Por essa razão, considerando a perspectiva evangélica e a gravidade do tema envolvido nessa controvérsia jurídica, a CNBB, à luz da doutrina cristã radicada no amor, na misericórdia e na preservação da vida, vem manifestar o seu ponto de vista e expor as suas razões, sem querer impor absolutamente nada, mas pedindo, tão somente, o direito de ser ouvida. Ser escutada para poder convencer é o que pede a CNBB.

8. Outrossim, além dos induvidosos aspectos religiosos empolgados na presente controvérsia, há profundas questões éticas e jurídicas. Aqui, aduziremos apenas os aspectos éticos e jurídicos pertinentes e não visitaremos aspectos religiosos. Por serem menos importantes ou irrelevantes ou irracionais? Não, mas por respeito àqueles que não os compartilham com a CNBB.

9. Cuida-se, em verdade, da seguinte questão ético-jurídica: a discussão acerca do início da vida e de sua destinação e do legítimo poder humano sobre outra vida humana diz respeito ao gênero humano, em sua totalidade, não apenas a uma determinada confissão ou convicção religiosa. É a humanidade ou não de um feto anencefálico que se vai decidir e o sentido dessa humanidade.

10. A defesa da vida humana é uma das causas universais (católicas) da CNBB, da Igreja e de todos os homens e mulheres de boa vontade, independentemente das convicções religiosas, crentes ou não crentes.

11. Por esses motivos, Excelências, a CNBB pede para que sejam consideradas algumas indagações de superior importância:

a) O feto anencefálico é ser humano ou é uma "coisa"?

b) Dizem que é um "ser não-vivo". O que é esse ser não-vivo?

c) É ser dotado de uma essencial dignidade e merecedor de uma especial proteção ou é um sub-humano, uma coisa em forma humana?

d) O feto anencefálico é uma patologia ou é a anencefalia que é uma patologia?

e) O doente se confunde com a doença? O anômalo com a anomalia?

f) Acabaremos com as doenças dizimando os doentes?

g) A humanidade de um ser está apenas em sua racionalidade? Somente os seres racionais são humanos?

h) A proteção ao nascituro, desde a concepção, é letra morta do nosso Código Civil?

i) Só o nascituro com viabilidade extra-uterina é merecedor de proteção jurídica?

j) Somente seres humanos viáveis são destinatários de proteção?

l) A dignidade da vida do feto anencefálico é inferior ao bem–estar da mulher gestante?

m) Uma gravidez pode ser comparada a uma tortura ou a um tratamento degradante porque o feto não atende às expectativas dos pais?

n) Fica a dignidade de uma gestante aviltada por carregar em seu ventre um feto anencefálico?

o) O abortamento ou o eufemismo "antecipação terapêutica do parto" se justificam por uma razão de bem-estar da gestante ou da família?

p) A vida requer adjetivos e outros qualificativos ou ela se basta enquanto si?

q) O que vale mais que a vida humana? O bem estar?

r) A vida só deve ser protegida se útil?

s) Quem são os úteis para viver?

) O feto anencefálico é um outro, um ser humano vivo, ou não passa de um pedaço de carne que deve ser extirpado do corpo da gestante?

u) A mão humana deve intervir para salvar ou para matar?

v) Os avanços da medicina e da ciência devem atropelar as concepções éticas de uma sociedade?

x) O sacrifício da vida do feto anencefálico restaura a dignidade da gestante?

z) O feto anencefálico não tem o direito de morrer naturalmente?

12. As respostas a essas indagações são indispensáveis para o deslinde dessa questão. Pede-se, Excelências, que reflitam sobre as respostas e sobre os princípios que serão estabelecidos a partir delas. A decisão do Supremo estabelecerá um caminho e uma perspectiva acerca do sentido da vida.

13. A CNBB entende, concessa venia dos que pensam em contrário, que o ser humano, independentemente de sua forma ou estágio, é pessoa humana, sujeito e nunca uma coisa ou um ser qualquer. A pessoa humana, seja em que estágio for ou estiver, não pode ser coisificada ou desqualificada em hipótese alguma.

14. Todo ser humano, e o feto anencefálico, para a CNBB, é ser humano, independentemente da situação em que se encontre, é merecedor de uma especial atenção e dotado de uma essencial dignidade. E eles – fetos anencefálicos e todos que não tenham viabilidade ou que não sejam mais úteis - mais do que nunca, por não poderem se defender e sem terem nada, sequer a consciência de sua dignidade, são os que devem ser especialmente protegidos.

15. O sofrimento da gestante e da família a todos sensibiliza e não podemos ser indiferentes a essa dor e angústia. Mas esse sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida do filho que se carrega no ventre. Não é uma simples escolha, um simples ato de vontade, não se trata apenas do próprio corpo, mas se cuida de uma outra vida, de vida autônoma, de vida que vale por si, pelo simples fato de existir. Ou o feto anencefálico não existe?

16. Não será a antecipação da morte que livrará a mãe ou o feto de seus sofrimentos. O sacrifício da vida fetal, nada obstante a inviabilidade extra-uterina, não se justifica em face dos interesses maternos ou familiares. O sacrifício de uma vida, e o feto anencefálico é ser humano vivo, insistimos, porque essa vida é inviável socialmente não pode ser aceito no atual estágio e grau de desenvolvimento de nossa cultura.

17. Vislumbrar o feto anencefálico como uma "coisa", sub-humana, patologia, ou qualificações similares nos lembra a retórica nazi-fascista ou daqueles que desprezam a pessoa humana. Destila-se contra o feto anencefálico o ódio venenoso que mata qualquer sentimento de civilização que temos. Nós não podemos nos juntar às culturas que matavam àqueles que não atendiam as suas expectativas, sejam quais forem: físicas, estéticas, éticas, religiosas, sexuais, econômicas, raciais etc.

18. Em um Estado que se diz e que se quer Democrático e de Direito, os mais frágeis são os primeiros a serem protegidos e não mortos ou terem antecipada terapeuticamente a sua morte.
São essas, Excelentíssimos senhores, as nossas breves considerações que lhes submetemos.

Nestes termos, pedimos e esperamos uma profunda reflexão ética sobre o tema. Que a luz da sã razão ilumine as suas consciências e que pensem, não apenas no direito de decidir da gestante, mas nos direitos que não tiveram os fetos.
Brasília, 19 de agosto de 2004.
Luís Carlos Martins Alves
OAB/DF 18.274

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