16.11.2010 - A vida religiosa se encontra hoje submetida a notáveis influências. Destas, em particular, duas me parecem merecedoras de especial atenção.
A primeira é a secularização. Um fenômeno histórico nascido na França em meados do século XVIII, que investiu sobre todas as sociedades que almejavam entrar na modernidade.
A segunda trata-se da abertura ao mundo, justamente proclamada pelo Concílio Vaticano II, a qual foi interpretada, sob a pressão das ideologias do momento, como uma passagem necessária para a secularização.
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De fato, nos últimos cinquenta anos, assistimos a uma formidável iniciativa de auto-secularização interna da Igreja. Exemplos não faltam: os cristãos estão prontos a empenhar-se em serviço da paz, da justiça e das causas humanitárias, mas creem ainda na vida eterna? As nossas Igrejas colocaram em ato um imenso esforço para renovar a catequese, mas esta mesma catequese fala ainda da escatologia, da vida após a morte? As nossas Igrejas se empenharam na maior parte dos debates éticos do momento, mas discutem sobre o pecado, sobre a graça e sobre as virtudes teologais? As nossas Igrejas recorreram ao melhor do próprio engenho para melhorar a participação dos fiéis na liturgia, mas esta última não perdeu, em grande parte, o senso do sacral, a bem dizer aquele sabor de eternidade?
A nossa geração, talvez sem dar-se conta, não sonhou com uma “Igreja dos puros”, colocando suspeitas contra qualquer manifestação de devoção popular?
Que fim teve, em tal contexto, aquela vida religiosa que era apresentada na forma tradicional, como um sinal escatológico e uma antecipação do Reino futuro? De fato, religiosos e religiosas sem demora abandonaram o hábito da própria família espiritual para vestir-se como todos os outros. Rapidamente abandonaram os próprios conventos, julgando-os demasiado vistosos ou ricos, em troca de pequenas comunidades esparsas em cidades ou nos grandes conglomerados urbanos. Escolheram trabalhos profanos, empenharam-se na atividade social e caritativa, ou ingressaram no serviço de causas humanitárias. Fizeram-se semelhantes aos outros e se fundiram na massa, às vezes para ser o fermento, mas também, em muitos casos, porque tal procedimento correspondia ao clima dos tempos.
Não devemos subestimar os méritos de tais impostações nem os benefícios que deles recolhe a Igreja ainda hoje. Aqueles religiosos e religiosas, de fato, fizeram-se mais próximos às pessoas e, em particular, aos mais desprivilegiados, mostrando uma face da Igreja mais humilde e fraterna. Não obstante, esta forma de vida religiosa não parece haver mais futuro, pois quase não atrai mais vocações.
A quase totalidade das congregações ativas nascidas no século XIX ou no início do XX se encontra como que ferida de morte, e seu desaparecimento é somente uma questão de tempo.
As casas generalícias e os grandes conventos são transformados em casas de repouso para anciãos. Entre 1973 e 1985, 268 congregações francesas das 369 existentes fecharam o próprio noviciado. A situação atual não fez que piorar. A auto-secularização minou os fundamentos da vida religiosa. A crise atingiu sobretudo as formas de vida ativa, e menos aquelas contemplativas, porque a secularização orientou tudo aquilo que é religioso em direção à militância ou ao empenho social.
É de notar-se que o militante ou a pessoa empenhada na atividade social permanece leigo. Eis a segunda tipologia de pressão exercida sobre a vida religiosa. Para enfrentar o convite da secularização, o Concílio teve a genial intuição de confiar esta missão aos leigos. Se eles que possuem a sorte de serem os protagonistas da sociedade secular, não serão porventura os mais apropriados para realizar tal dever? O Vaticano II valorizou a vocação dos leigos – não digo que a revalorizou, pois uma similar empresa não houve lugar no passado. Todavia, realmente a valorização do laicato provocou um tipo de quebramento da vida religiosa “ativa”.
Se esta última, de fato, reconheceu há tempos a própria identificação com um serviço específico oferecido à Igreja e à sociedade – como o ensino nas escolas ou o cuidado dos doentes nos hospitais – com o chamado dos leigos a executarem tais serviços e a se dedicarem, a vida religiosa ativa perdia sua razão de ser.
Hoje, não é mais necessário passar por uma consagração para executar os mesmos serviços. Quando nos encontramos em presença de uma mestra que ensina com paixão ou de uma enfermeira serviçal realmente decidida em ter uma vida autenticamente cristã, podemos perguntar-se se a mesma senhora, há cem ou cento e cinquenta anos, não se haveria apresentado diante da porta de uma daquelas recém nascidas congregações que evocamos há pouco?
Isto nos conduz à seguinte conclusão: hoje, mais do que nunca, a vida religiosa não pode ser definida partindo de uma “função”, mas sim de um modo de ser e de um estilo de vida. Os dois riscos que acabamos de descrever em forma sintética constituem um perigo para a vida religiosa. Sua combinação provoca nesta última um tipo de implosão. Em consequência, a situação atual da vida religiosa, sobretudo nas Igrejas ocidentais, se apresenta em modo paradoxal. De um lado, após o Concílio, gozamos das vantagens de uma importante renovação da teologia da vida religiosa. De outra, assistimos ao colapso de numerosas congregações, assim como a um florescimento de novas formas de vida religiosa na primeira metade dos anos setenta.
Este caráter paradoxal nos convida então a retornar ao essencial. A começar do fato que a vida religiosa é única na sua essência, porém variada em suas formas. Em outros termos, estas múltiplas facetas nasceram todas de um tronco comum: da vida e da tradição monástica. Em consequência, a primeira dimensão é mística: a vida religiosa nos imerge no mistério da morte e da ressurreição de Cristo. Portanto, é um erro definir um instituto a partir da sua atividade tal como foram concebidas as congregações nascidas nos dois últimos séculos.
Este chamado a estar com o Senhor é transmitido a cada pessoa, pois toda vocação é muito personalizada e não existem dois percursos que são verdadeiramente similares. Todavia, este chamado convida a unir-se a uma comunidade específica. Alguns experimentam um choque nos confrontos de uma comunitária, mas não lhes vem à mente a ideia de bater em outra porta. Outros, ao contrário, se concedem um longo tempo de reflexão, durante o qual fazem o giro de muitas casas e se dedicam a estudos comparativos muito acurados. Em cada época há matrimônios de amor e matrimônios de razão. Aquele que é certo, porém, é que a atração é sempre ligada à vida comunitária. Em efeito, o código de direito canônico define a vida religiosa como uma vida essencialmente comunitária. E esta vida comunitária é eminentemente espiritual na medida em que é o Espírito Santo que a anima e conduz. Podemos então deduzir que a fé dada pelo Espírito representa a chave de leitura de todos os elementos que constituem a vida religiosa, a começar pelos votos e pela oração.
Neste sentido, a pobreza religiosa não é um conceito sociológico. Não é constituída para dar o exemplo da pobreza. A palavra mesma não se identifica senão em época mais tardia; primeiramente, se falava de “sine proprio”, ou ainda de “communio”, termos muito mais sugestivos. Logo, o voto religioso corresponde a um ato de fé por meio do qual o religioso aceita aquele dom do Espírito que o estimula a não ter nada para si, a fim de viver de modo mais intenso possível a sua comunhão com a vida fraterna.
Do mesmo modo, a obediência religiosa não é “in primis” de natureza ascética ou pedagógica. Indubitavelmente, pressupõe uma ascese na medida em que implica uma certa renúncia à própria vontade. Apresenta, ademais, uma dimensão pedagógica, na medida em que visa a educar em nós a liberdade dos filhos de Deus. A sua natureza, porém, é essencialmente mística: faz-nos entrar em um sistema no qual quem ordena é o Espírito. A fé nos leva a afirmar que a ordem dada não vem antes de tudo pela vontade do superior – ainda que possua a marca da sua psicologia, e talvez da sua patologia – mas sim, dada pelo Espírito, do qual o superior é, em certo sentido, o representante visível. Neste ponto, deixamos de comportar-nos como simples entidade para tornar-nos um corpo fraterno.
Também entre o amor humano e a castidade religiosa – apesar de possuírem diversos pontos em comum – há uma diferença essencial. O amor humano comporta uma escolha, uma conquista, e se apresenta como um amor de exclusão: escolher uma esposa específica comporta renunciar a todas as outras. Ora, contrariamente às aparências de que a escolha de tornarmo-nos carmelitas ou dominicanos origina-se em uma iniciativa pessoal, a vida religiosa não é uma opção, pois nos encontramos envolvidos nesta vida sob o impulso do Espírito. Para cada um de nós, seria impossível permanecer fiéis às promessas de nosso batismo fora da vida religiosa. Nesta última, não existe alguma conquista nem alguma exclusão: o Espírito nos faz partícipes de uma comunidade de acolhida, na qual todos devem descobrir a viver como irmãos.
Finalmente, é na fé dada pelo Espírito que vivemos a oração, não como uma atividade como as outras, ou apenas uma atividade a mais, nem como uma ameaça para as diversas atividades implicadas pelos estilos de vida – todos nós conhecemos bem aquela tensão entre o nosso trabalho e o tempo dedicado à oração, que equivale muitas vezes a um tempo restrito. No simbolismo monástico, o claustro ou a abertura ao Espírito representa o ligame entre a Igreja, lugar de oração (Opus Dei), e os diversos lugares de trabalho (opus hominis), como uma escola na qual aprendemos a descobrir um “mendicante do Senhor”.
Dom Jean-Louis Bruguès
Secretário da Congregação para a Educação Católica
(Tradução de artigo publicado no L’Osservatore Romano – 20 outubro de 2010)
Fonte: http://www.comshalom.org/blog/carmadelio
Fonte: www.rainhamaria.com.br