As duas listas
Quando a inveja penetra no coração, estraga a nossa paz e rouba-nos a alegria. Dói-nos, queima-nos por dentro o que nós não temos e outros têm, o que não conseguimos e outros conseguem, o fracasso que “não merecemos” ao lado de tantos outros que triunfam… O diabo aproveita-se dessas amarguras para nos fazer duvidar da bondade de Deus e da sua Providência. E, a fim de conseguir isso, põe uma venda sobre os nossos olhos, para que não sejamos capazes de “ver” aquilo que curaria a nossa inveja.
Não nos deixemos envolver pelas mentiras do Maligno (rei e senhor da inveja). Arranquemos dos olhos a sua venda suja, e contemplemos as coisas sob o sol de Deus. Para isso, será muito bom que, de vez em quando, paremos para meditar e, pegando num papel, escrevamos duas listas.
Começar por fazer a lista das coisas boas que Deus nos dá. Anotemos, de por exemplo, as maravilhas da criação material - a beleza das árvores, os rios, o mar, o céu, os animais, as plantas… -, das quais desfrutamos a toda a hora quase sem reparar. Prossigamos anotando o grande bem da vida - podíamos não existir -, com todos os dons naturais e sobrenaturais (a fé, a graça do Espírito Santo, o amor de Jesus e de nossa Mãe Maria…) que Deus derramou sobre nós. A seguir, façamos o elenco de todas as pessoas boas e dignas de amor e gratidão que estão perto de nós. Não deixemos de registrar também os acontecimentos da vida em que a proteção de Deus, de Nossa Senhora, dos Anjos, dos Santos, foi clara, palpável. Acrescentemos a isso tantas ocupações, trabalhos, e atividades que amamos; e mais os nobres prazeres da música, da arte, dos esportes… Quantas coisas não temos para agradecer a Deus e àqueles que nos amam!
Na outra lista - por contraste -, anotemos os sofrimentos, doenças, limitações, deficiências físicas e psíquicas, fome, sede, solidão, pavores…, que observamos na vida de muitas outras pessoas, e que nem tocaram na nossa. Esse elenco também pode ser interminável. Se porventura não o “vemos” assim tão grande, basta que façamos uma visita ao pronto-socorro e às enfermarias dos grandes hospitais públicos; outra a um hospital ou pavilhão do câncer, começando pelo setor infantil; outra a uma clínica psiquiátrica ou ao manicômio judiciário; e, além disso, demos uma volta pelas ruas de qualquer grande cidade, registrando toda a pobreza, miséria e abandono que detectarmos nelas. É bem provável que então “vejamos”.
E que, além de “ver”, comecemos a sentir vergonha quando nos surpreendermos a gemer, a olhar para a casa do vizinho, e a reclamar: - “Eu não tenho o carro que ele tem! Eu nunca fui a Cancún! Eu não tenho aquela posição na firma! Sou um infeliz!”
As antigas avós - e algumas das modernas -, quando os netos ficam muito reclamões, dizem-lhes: - “Não reclames, menino! Olha que Deus vai-te castigar!”
Deus não costuma castigar assim os meninos que reclamam, mas as avós fazem bem em alertá-los, porque é penoso resmungar de inveja quando há milhões de coisas que agradecer.
Voltando às listas, creio que ainda poderíamos acrescentar uma terceira: um elenco paradoxal de motivos de ação de graças, uma lista absurda para quem não possui os olhos da fé e do amor cristão. Porque fazer essa lista consiste em anotar, como motivos de alegre agradecimento a Deus, todas as cruzes, contrariedades e sofrimentos com que Ele nos abençoa. O bom filho de Deus, que ama seu Pai e confia nele, sabe que essas dores nos elevam, nos limpam, nos purificam, tornam maduro o nosso amor e fazem crescer as nossas virtudes. Por isso São Paulo afirma, com grande alegria: Todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus (Rom 8, 28). Mas este é um outro tema em que haveria muito que aprofundar (veja, por exemplo, os verbetes “Cruz” e “sofrimento”, na “nuvem alfabética de tags” deste site).
Acho o mundo muito bom
A pessoa que começa a habituar-se a cultivar a gratidão, que se vai tornandoagradecida - Sede agradecidos!, instava São Paulo (Col 3, 15) - experimenta uma fantástica iluminação na alma. Acontece-lhe como se tivesse apertado um botão no escuro e, de repente, inúmeras luzes se tivessem acendido sobre a noite das antigas invejas, até formarem a bela constelação das graças de Deus, das pessoas e das coisas que nos fazem bem, que nos trazem amor, alegria, consolo e estímulo para viver, para lutar, para melhorar.
Se enxergássemos essa noite iluminada, passaríamos a vida a cantar, sem fim, com a liturgia da Igreja: Na verdade, é justo e necessário, é nosso dever e salvação dar-Vos graças sempre e em todo lugar, Senhor, Pai santo, Deus eterno e todo-poderoso.
As pessoas que têm olhos puros para ver e coração generoso para agradecer são muito mais felizes do que as que nada percebem porque padecem de torcicolo moral, aquele torcicolo da inveja, que consiste em ter sempre a cabeça virada de lado - doendo! - a olhar para a vida dos outros.
Lembro-me de que, em maio de 1974, durante a estadia de São Josemaría Escrivá em São Paulo, chegou à casa onde se hospedava - e onde eu tive a felicidade de residir também - um grande buquê de rosas. Vinha acompanhado de uma carta de Dona Leopoldina, uma afável anciã de 84 anos, que acabava de participar de um encontro com São Josemaría. A carta dizia assim:
“Estou a ditar estas palavras, porque não tenho condições de saúde para escrever pela minha própria mão, para lhe dizer que hoje foi um dia de grande alegria. Poder vê-lo e ouvi-lo pessoalmente, e além disso beijar-lhe a mão, foi um motivo de enorme felicidade e dou graças a Deus por isso.
“Antes da sua vinda ao Brasil e ao longo destes dias tenho pedido muito a Deus que esta viagem produza os frutos que o Padre deseja.
“Sou portuguesa de nascimento, mas brasileira de coração; amo muito o Brasil, e todos os meus filhos, netos e bisnetos são brasileiros. Tenho 84 anos e agradeço a Deus ter chegado até esta idade e tudo o mais que me concedeu.
“Estou alegre com a vida, e muito feliz. Acho o mundo muito bom, creio muito em Deus e na Virgem Maria, e sei que nada somos sem Ela. Rezo muito pelo Opus Dei. Tenho-lhe muito carinho e vibro por ele. Todos os dias rezo particularmente pelo Padre. Entendo que a Obra é uma coisa muito boa e estou muito feliz de que a minha filha siga esse caminho. Juntamente com estas flores, envio-lhe o meu agradecimento e peço-lhe uma Ave-Maria; será muito valiosa”.
Almas como a de Dona Leopoldina fazem-nos cantar um hino de gratidão a Deus. Que lição nos dão! Uma imigrante portuguesa, que experimentou, muito provavelmente, a dureza das lutas, das incertezas e sacrifícios de quem abre caminho num novo país, e que, já no final da jornada terrena, só vê motivos para dar graças a Deus e sentir-se feliz!
Também pelos benefícios que não conheço
Não sei se Dona Leopoldina, à sua idade, estava em condições de ler os escritos do Fundador do Opus Dei, a quem dedicava tanto carinho. Se o fazia, tenho a certeza de que terá acrescentado às suas felicidades mais esta: a de sentir-se em plena sintonia com um santo.
Porque São Josemaría era uma alma que viveu agradecendo tudo a Deus; eu diria que viveu mergulhado numa perpétua ação de graças. Com o fulgor da fé, reconhecia a mão de Deus em todas as coisas - nas que parecem boas e nas que parecem más - e dizia, sereno e feliz: “De Deus não me pode vir mal algum”.
Por isso, não se cansava de agradecer: “Se as coisas correm bem - escrevia -, alegremo-nos, bendizendo a Deus que dá o incremento. - Correm mal? - Alegremo-nos, bendizendo a Deus que nos faz participar da sua doce Cruz” (Caminho, n. 658). Nunca encontrava motivos para se queixar ou para se sentir infeliz, e assim o dizia, com a maior simplicidade: “Eu não me tenho sentido infeliz nunca”.
Era costume de Mons. Escrivá rezar diariamente uma oração, agradecendo a Deus “todos os vossos benefícios, etiam ignotis - também os que não conheço”. Por isso era feliz. “Que estejam tristes - costumava repetir - os que não sabem que são filhos de Deus”, os que não se sabem amados por Deus.
A gratidão! Uma magnífica porta de acesso à felicidade. A pessoa agradecida, quando olha de relance para a vida do vizinho e sente, talvez, um frêmito de inveja percorrer-lhe a alma, corta-o logo pela raiz e comenta em seu íntimo com um sorriso: “Tenho tanto que agradecer, que não tenho tempo para invejar”.
(Adaptação de um trecho do livro de F. Faus: A inveja).