22 de jul. de 2010
A ditadura do relativismo, por Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI)
Por Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI)
Texto da homilia do então Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, pronunciada na Missa Pro Eligendo Pontífice, celebrada no dia 18 de abril de 2005.
Nesta hora de grande responsabilidade, escutamos com particular atenção aquilo que o Senhor nos diz com as suas próprias palavras. Das três leituras, queria escolher apenas algumas passagens que nos dizem diretamente respeito num momento como este.
A primeira leitura oferece um retrato profético da figura do Messias – um retrato que ganha todo o seu significado quando Jesus lê este texto na sinagoga de Nazaré, e diz: Hoje cumpriu-se este passo da Escritura (Lc 4, 21). No centro deste texto profético, encontramos uma palavra que – pelo menos à primeira vista – parece contraditória. O Messias, falando de Si mesmo, diz que foi enviado a proclamar o ano da graça do Senhor, o dia da vingança da parte do nosso Deus (Is 61, 2).
Escutemos, com alegria, o anúncio do ano da misericórdia: a misericórdia divina põe um limite ao mal – disse-nos o Santo Padre. Jesus Cristo é a Misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus.
O mandato de Cristo tornou-se o nosso mandato, através da unção sacerdotal; somos chamados a promulgar – não só com palavras, mas com a vida, e com os sinais eficazes dos sacramentos, o ano de misericórdia do Senhor.
Mas o que é que Isaías quer dizer quando anuncia o dia da vingança do nosso Deus? Jesus, em Nazaré, na sua leitura do texto profético, não pronunciou estas palavras – concluiu anunciando o ano da misericórdia. Foi talvez, este o motivo do escândalo que se gerou depois da sua pregação? Não o sabemos.
De qualquer modo, o Senhor ofereceu o seu comentário autêntico relativamente a estas palavras com a morte de cruz. Ele levou os nossos pecados em seu Corpo, sobre o madeiro..., diz São Pedro (1 Pe 2, 24). E São Paulo escreve aos Gálatas: Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, ao fazer-se maldição por nós, pois está escrito: “Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro”. Isto para que a bênção de Abraão chegasse até aos gentios, em Cristo Jesus, para recebermos a promessa do Espírito, por meio da fé (Gal 3, 13 e segs.). A misericórdia de Cristo não é uma graça que se pode comprar por baixo preço, não supõe a banalização do mal. Cristo carrega no seu Corpo e na sua Alma todo o peso do mal, toda a sua força destruidora. Ele queima e transforma o mal no sofrimento, no fogo do seu amor sofredor.
O dia da vingança e o ano da misericórdia coincidem no Mistério Pascal, em Cristo morto e ressuscitado. Esta é a vingança de Deus: Ele mesmo, na Pessoa do Filho, sofre por nós. Quanto mais somos tocados pela misericórdia do Senhor, tanto mais entramos em solidariedade com o seu sofrimento – tornamo-nos disponíveis para completar na nossa carne o que falta à Paixão de Cristo (Col 1, 24).
Passemos à segunda Leitura, à Epístola aos Efésios. Aqui, trata-se, essencialmente, de três coisas: em primeiro lugar, dos ministérios e dos carismas na Igreja, como dons do Senhor ressuscitado e que subiu ao Céu; em seguida, trata-se do amadurecimento da fé e do conhecimento do Filho de Deus, como condição e conteúdo da unidade no corpo de Cristo; e, por fim, trata-se da participação comum no crescimento do Corpo de Cristo, isto é, da transformação do mundo na comunhão com o Senhor. Detenhamo-nos apenas sobre dois pontos.
O primeiro é o caminho para a maturidade de Cristo – assim diz o texto italiano, simplificando um pouco. Segundo o texto grego, devemos mais precisamente falar da medida da plenitude de Cristo, à qual somos chamados a atingir para sermos realmente adultos na fé. Não devemos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. E em que é que consiste ser crianças na fé? Responde São Paulo: significa ser batidos pelas ondas e levados ao sabor de qualquer vento de doutrina... (Ef 4, 14). Uma descrição muito atual! Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantos modos de pensamento... A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi não raro agitada por estas ondas – lançada dum extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até ao ponto de chegar à libertinagem; do coletivismo ao individualismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante.
Todos os dias nascem novas seitas e cumpre-se assim o que São Paulo disse sobre o engano dos homens, sobre a astúcia que tende a induzir ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, é freqüentemente catalogado como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor de qualquer vento de doutrina, aparece como a única atitude à altura dos tempos atuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério último apenas o próprio “eu” e os seus apetites.
Nós, pelo contrário, temos um outro critério: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É Ele a medida do verdadeiro humanismo. Não é “adulta” uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e madura é antes uma fé profundamente enraizada na amizade com Cristo. É essa amizade que se abre a tudo aquilo que é bom e que nos dá o critério para discernir entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre engano e verdade.
Devemos amadurecer essa fé adulta. A essa fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé – e somente a fé – que cria unidade e se realiza na caridade. Em contraste com as contínuas peripécias daqueles que são como crianças batidas pelas ondas, São Paulo oferece-nos a este propósito uma bela palavra: praticar a verdade na caridade, como fórmula fundamental da existência cristã. Em Cristo, verdade e caridade coincidem. Na medida em que nos aproximamos de Cristo, assim também na nossa vida, verdade e caridade se fundem. A caridade sem a verdade seria cega; a verdade sem a caridade seria como um címbalo que tine (1 Cor 13, 1).
Vejamos agora o Evangelho, de cuja riqueza queria extrair apenas duas pequenas observações. O Senhor dirige-nos estas maravilhosas palavras: Já não vos chamo servos... mas chamei-vos amigos (Jo 15, 15). Tantas vezes sentimos que somos – e é verdade – apenas servos inúteis (cf. Lc 17, 10). E não obstante isto, o Senhor chama-nos amigos, faz-nos seus amigos, dá-nos a sua amizade. O Senhor define a amizade de um duplo modo. Não existem segredos entre amigos: Cristo diz-nos tudo quanto escuta do Pai; dá-nos toda a sua confiança e, com a confiança, também o conhecimento. Revela-nos o seu rosto, o seu coração. Mostra-nos a sua ternura por nós, o seu amor apaixonado que vai até à loucura da cruz. Confia-se a nós, dá-nos o poder de falar com o seu Eu: Isto é o meu Corpo..., Eu te absolvo... Confia o seu Corpo, a Igreja a nós. Confia às nossas débeis mentes, às nossas débeis mãos a sua Verdade – o mistério de Deus Pai, Filho e Espírito Santo; o mistério do Deus que amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito (Jo 3, 16). Fez de nós seus amigos – e nós, como respondemos?
O segundo elemento, com que Jesus define a amizade é a comunhão das vontades. Idem velle – idem nolle <“os mesmos gostos e repulsas”>, era também para os romanos a definição de amizade. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando (Jo 15, 14). A amizade com Cristo coincide com aquilo que o terceiro pedido do Pai-Nosso exprime: Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. Na hora do Getsêmani, Jesus transformou a nossa vontade humana rebelde em vontade conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama da nossa autonomia – e é exatamente pondo a nossa vontade nas mãos de Deus, que nos dá a verdadeira liberdade: Não se faça como Eu quero, mas como Tu queres (Mt 26, 39). Nesta comunhão das vontades, realiza-se a nossa Redenção: ser amigos de Jesus, tornar-se amigos de Deus. Quanto mais amamos Jesus, tanto mais O conhecemos, tanto mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de ser redimidos. Obrigado Jesus, pela tua amizade!
O outro elemento do Evangelho que queria acenar é o discurso de Jesus sobre o dar fruto: Fui Eu que vos escolhi e vos destinei para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça (Jo 15, 16). Aparece aqui o dinamismo da existência do cristão, do apóstolo: Escolhi-vos para que vades... Devemos animar-nos nesta santa inquietação: a inquietação de levar a todos o dom da fé, da amizade com Cristo. Em verdade, o amor, a amizade de Deus foi-nos dada para que chegue também aos outros. Recebemos a fé para a dar a outros – somos sacerdotes para servir outros. E devemos dar um fruto que permaneça.
Todos os homens querem deixar um rasto que permaneça. Mas o que é que permanece? O dinheiro não. Os edifícios também não; muito menos os livros. Após um certo tempo, mais ou menos longo, todas estas coisas desaparecem. A única coisa que permanece eternamente é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade.
O fruto que permanece é, portanto, aquilo que semeamos nas almas humanas – o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor.
Então vamos e rezemos ao Senhor para que nos ajude a dar fruto, um fruto que permaneça. Somente assim a terra se transforma de vale de lágrimas, em jardim de Deus.
Enfim, voltemos mais uma vez, à Epístola aos Efésios. A Epístola diz – com as palavras do Salmo 68 – que Cristo, tendo subido ao Céu, distribuiu dons pelos homens (Ef 4, 8).
O Vencedor distribui dons. E estes dons são apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. O nosso ministério é um dom de Cristo aos homens, para construir o seu Corpo – o mundo novo. Vivamos o nosso ministério assim, como dom de Cristo para os homens! Mas nesta hora, sobretudo, rezemos com insistência ao Senhor, para que depois do grande dom do Papa João Paulo II, nos dê novamente um Pastor segundo o seu coração, um Pastor que nos leve ao conhecimento de Cristo, ao seu amor, à verdadeira alegria. Amém.
Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI)
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